O terceiro livro de André Albuquerque, Pindorama, sintetiza a saga de povos sobreviventes. Creio que esse seja o termo mais adequado. São sobreviventes a séculos de opressão, manifesta na forma da violência física ou na forma da imposição cultural. Chamados de índios, silvícolas ou, mais recentemente, de povos originários, são apenas seres humanos identificados com outra forma de vida, em muito distinta e até oposta àquela imposta pelo capitalismo e sua classe dominante, a burguesia.
"Pindorama" tem, além de tudo, o mérito de vincular o tempo inicial da tragédia - a fase colonial - com o mais recente desdobramento político brasileiro - o bolsonarismo - cujo resultado foi a retomada do extermínio físico e cultural dos sobreviventes.
Essa nova contribuição de André Albuquerque ao estudo do Brasil tem seu ponto mais elevado, ao meu ver, na apresentação das "perspectivas de um indigenista brasileiro". Felizmente há muita gente que se identifica e luta com semelhante perspectiva. É isso que nos concede otimismo com a vida, com o planeta e com a humanidade. André tem um imenso mérito por isso.
Escrever "Pindorama" foi um ato de resistência.
Além de recomendar leitura, proponho engajamento baseado nas perspectivas desse indigenista e escritor talentoso.
Clayton Avelar (HISTORIADOR)
eBook | PINDORAMA - Perspectivas de Um Indigenista Brasileiro
- Publicado em 16/03/2021
- ISBN: 9786589577003
- Idioma: PORTUGUÊS
- Páginas: 100
- Formato: ePub
- Tamanho: 7,1 MB
O povoamento da América do Sul teve início há cerca de cinquenta mil anos. O continente foi habitado por povos cujas culturas se desenvolveram com base na compreensão de que o Universo é regido por “tecnologia espiritual”, a qual conecta toda a existência. Para eles, somos criações sagradas da Natureza, e estamos ligados a ela física, mental e espiritualmente. Além disso, tudo o que existe possui espírito e precisa manter-se em harmonia com o Todo. Assim, eles entendem que, para preservar o equilíbrio da Vida, cada aspecto da existência deve ser ritualizado.
Para esses povos, que vivem holisticamente conectados à natureza e encantados por ela, amá-la e respeitá-la é algo natural. Eles entendem que o propósito da vida é viver em cooperação, gratidão, a celebrar o cotidiano com amor, alegria e sanidade; e que a felicidade surge como consequência da forma como cuidamos de nós mesmos e do planeta. Para eles, doenças revelam o enfraquecimento do espírito em consequência de desconexão com a humanidade, com a Terra e com o Universo. Antes da chegada dos brancos às terras que, hoje, formam o Brasil, a costa era conhecida pelos nativos como Pindorama, termo do idioma tupi que significa tanto “Terra das Palmeiras” quanto “Terra sem Males”.
Fértil, exuberante, diversa, abundante, acolhedora, paradisíaca; Pindorama era uma realidade a ser compartilhada por todos, mas possuída por ninguém. Com culturas que valorizam relações espontâneas, respeitosas, alegres e cooperativas, aqueles povos se estabeleceram como coletores, agricultores, pescadores e caçadores. A vida em comunidade, fundamental para os povos indígenas, é composta por relações familiares extensas, que envolvem, por exemplo, educação e cuidados compartilhados de velhos, crianças e jovens (respectivamente memória e esperança dos povos). Pindorama possuía a harmonia e o equilíbrio necessários para ser considerada por eles perfeita, divina. Mais de cinco milhões de pessoas, de centenas de etnias e línguas diferentes, habitavam aldeias interligadas por caminhos, costumes e visões de mundo. De forma geral, a vida acontecia em harmonia com a natureza, sem embates morais nem embaraços, em cooperação, solidariedade e celebração da existência. Isso não quer dizer que não houvesse momentos de conflito nas relações sociais e interétnicas, mas não havia mentalidade colonial, exploração da natureza, nem busca de acumulação material e de poder como meta de vida. A história oficial do Brasil, contudo, que apresenta a perspectiva colonial dos brancos, oprime ou demoniza as visões de mundo dos povos indígenas.
A expressão índio é uma generalização que foi usada por Cristóvão Colombo para identificar os povos nativos das Américas, ao acreditar que havia chegado às Índias. Mas Américo Vespúcio, cujo nome foi usado pelos brancos para identificar o novo continente, demonstrou que as américas são compostas por terras que eram desconhecidas pela Europa até então (com excceção dos vikings, que chegaram à costa da América do norte). De qualquer forma, os brancos continuaram a chamar os povos nativos de índios e justificaram moralmente a opressão contra os povos de cor ao considerá-los como seres primitivos e pagãos, e ao se perceberem como raça “mais evoluída”, que deveria naturalmente submeter as outras.
Se a realidade colonial representou, para os brancos, a chegada de tempos “paradisíacos” no novo continente, para os povos de cor, ela significou a chegada de tempos “infernais”. O colonialismo branco condenou, atacou e perseguiu brutalmente as perspectivas de mundo e o estilo de vida dos indígenas, que passaram a viver tempos de luta, de resistência à insanidades como a escravidão e a cultura da culpa e da tristeza (baseada na ideia de que todos possuímos um pecado original a ser redimido pela vontade de Deus, quando o conceito de pecado não existia entre os habitantes da Terra sem Males).
O estilo de vida branco, ganancioso, competitivo e explorador, foi imposto violentamente aos povos de cor por meio de superioridade bélica e corrupção. Além de sofrerem genocídios, etnocídios, roubo de terras, pilhagens de riquezas, os povos indígenas foram perseguidos pelas matas e pelos sertões, por pessoas como os Bandeirantes paulistas, para serem capturados e vendidos (eles eram os “pretos da terra”, que foram escravizados legalmente até a metade do século 18).
As ações dos brancos foram conduzidas por ignorância tanto sobre a humanidade ser uma grande família, quanto sobre o fato de todos pertencermos à Terra (e não o oposto). Por meio de ideologias racistas, por exemplo, as articulações coloniais de dominação envolviam a estratégia de dividir os povos para lhes enfraquecer e conquistar. Além disso, intencionalmente ou não, a personificação de Deus promovida pelo monoteísmo retirou o conceito de sagrado da Natureza e permitiu a exploração inconsequente, biocida e suicida dela.
Ao se observar relatos e estudos sobre a presença dos povos indígenas na formação do Brasil, percebe-se que, à medida que cresciam as pressões colonialistas, as quais pretendiam lhes “assimilar” como mão-de-obra escrava, os indígenas viam-se diante de três possibilidades: lutar, submeter-se ou fugir. Além dos aldeamentos criados pelos brancos, onde muitos grupos foram confinados, houve muitas guerras de resistência (que raramente são contadas nos livros de história), e muitos povos refugiaram-se adentrando pelas florestas (que conheciam como ninguém), a fim de permanecer distantes dos brancos.
A história oficial relata que, com a chegada dos africanos escravizados, a convivência dos brancos passou a ser cada vez mais com os pretos e menos com os povos indígenas, e não explica como se davam as relações entre indígenas e africanos, que começaram muito antes do colonialismo branco, como explico no meu segundo livro (Brasil Preto - Uma perspectiva oprimida). Frequentemente, além de reconhecerem que possuíam um inimigo em comum, pretos e índios estavam conectados pelas formas como percebiam o mundo e viviam, inclusive por meio de casamentos, e se apoiaram em busca de vida digna, conectada com a natureza, livre e feliz. Esse tipo de encontro era algo que os brancos temiam. Por isso, eles investiram o que puderam em ideologias como o racismo, a fim de criar divisões entre as pessoas, e criaram regras diferentes para lidar com indígenas e pretos. Mas os índios acolhiam pretos fugidos da escravidão. Quilombos, como o de Palmares, surgiram por meio da cooperação com os indígenas, que conheciam as matas e os recursos naturais.
Após a independência do Brasil, imagens romantizadas dos indígenas passaram a ser usadas para representar o verdadeiro “herói nacional”, o “autêntico brasileiro” (apresentado em obras como O Guarani, escrito por José de Alencar em 1857). Os “brancos” brasileiros passaram a se orgulhar do sangue indígena que lhes diferenciava dos portugueses. Esse foi elemento fundamental da construção da identidade brasileira. A maioria dos mestiços esforçava-se para se apresentar, no máximo, como indígenas; mas não como pretos.
Com o surgimento da República, e os movimentos de interiorização da nação em direção ao centro-oeste, surgiu programa conduzido pelo Marechal Rondon (que possuía sangue indígena) para integrar o território por meio da instalação de redes de telégrafos e da elaboração de mapas cartográficos. Com isso, os índios que ainda viviam isolados pelos sertões passaram a ter contatos forçados com os brancos. Naquela época, ainda estavam presentes as ideias de assimilar os indígenas à sociedade brasileira como “caboclos” (mão de obra barata). Essa conjuntura estimulou a criação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) em 1910, do qual Rondon foi o primeiro diretor. O SPI deveria “pacificar” os índios e prepará-los para a civilização. Rondon, no entanto, também estimulou a preservação das culturas indígenas. Além disso, ele afastou os missionários das aldeias, a fim de assegurar a laicidade do Estado republicano.
Durante os anos de Getúlio Vargas, a fim de ampliar a ocupação daquelas regiões, foi organizada a Marcha para o Oeste (1943), programa do qual participaram os irmãos Villas Boas (foi nessa época que os Kayapó, povo ao qual pertence o cacique Raoni, entraram em contato pela primeira vez com os brancos). Ao seguirem o lema de Rondon (“morrer se preciso for, matar nunca”), eles entraram para a história do indigenismo no Brasil como os principais responsáveis pela criação da primeira Terra Indígena reconhecida pelo Estado brasileiro: o Parque Nacional do Xingú (até então, havia apenas pequenas reservas). O projeto foi redigido pelo antropólogo Darcy Ribeiro, que era então funcionário do SPI no Museu do Índio (criado em 1953, ainda sob o comando de Rondon), e o parque foi criado em 1961, pelo presidente Jânio Quadros.
Vale lembrar que Brasília, a nova capital federal, foi inaugurada na região central do Brasil em 1960, e Jânio foi o primeiro presidente a ocupá-la, em um tempo que se falava sobre construir um novo Brasil, que deveria ser igualitário e “limpo” das sujeiras da corrupção (o lema da campanha de Jânio foi uma vassoura). Contudo, em 1964, houve outro golpe militar no país, supostamente a fim de livrar o Brasil das “ameaças comunistas” da revolução cubana. Em 1967, o SPI foi substituído pela Fundação Nacional do Índio (Funai), e houve centralização das políticas indigenistas, que eram conduzidas anteriormente pelos Estados da Federação (em cooperação com Brasília).
Em 1973, surgiu o Estatuto do Índio, que regulou as relações do Estado brasileiro com os povos indígenas, considerados “ingênuos” a serem tutelados pelo poder público. Os anos de 1970 e 1980 viram o ressurgimento de movimentos e mobilizações indígenas pelo país. Os povos indígenas participaram ativamente da elaboração da Constituição Federal de 1988 (Constituição Cidadã), por meio da qual o Estado brasileiro se declarou como multiétnico, multicultural, multilinguístico, encerrou o regime de tutela dos povos indígenas, e reconheceu os direitos deles de viverem nas terras que tradicionalmente ocupavam, de acordo com as próprias culturas e tradições.
O Brasil, além disso, internalizou Tratados ou Convenções Internacionais, como a Declaração da Organização das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que defendem o direito dos povos indígenas de serem protagonistas dos próprios destinos, e de serem consultados sobre ações dos Estados que interfiram no cotidiano deles. As maiores riquezas do Brasil são a biodiversidade e a sociodiversidade. As culturas e os conhecimentos tradicionais indígenas enriquecem a vida do Brasil e da humanidade, mas a maioria dos brasileiros desconhece a realidade e a história dos povos indígenas. Em geral, o que se reproduz são, ou ideias romantizadas e fossilizadas sobre os índios com base em imagens fantasiosas do início do período colonial, ou preconceitos (como o de que os indígenas atravancam o progresso do país) e agressões (como roubo de terras e de riquezas, que eles preservam como patrimônio da humanidade).
Esses estereótipos são, ainda hoje, reproduzidos nas escolas do país em um dos pouquíssimos momentos em que as crianças pensam sobre os indígenas: o dia do índio. Mesmo que realizado com boas intenções, ele não promove conhecimentos sobre quem são os povos indígenas atualmente, e estimula e fortalece preconceitos. Mas os tempos urgem que percebamos quem são e como vivem os povos tradicionais destas terras que chamamos de Brasil, pois a solução para os dilemas sociais e ambientais pelos quais a humanidade passa estão nos conhecimentos tradicionais deles. Ainda hoje, o país possui 305 etnias indígenas, falantes de 274 línguas, além de cerca de 70 grupos que ainda vivem sem contato com a sociedade branca em meio à maior biodiversidade do planeta.
Este trabalho, resultado de cerca de dez anos de experiências profissionais como indigenista, e de cerca de vinte anos de estudos, diálogos, vivências e reflexões sobre história e culturas indígenas, pretende apresentar, de forma breve, fluida e acessível, perspectivas indígenas e indigenistas sobre a história do Brasil. Para isso, combinamos, em nossa narrativa, elementos históricos, sociais, políticos, econômicos, estratégicos e místicos. Com o objetivo de priorizar a fluidez da leitura, evitamos fazer notas de rodapé. Para quem desejar ir mais a fundo, apresentamos, na Bibliografia, obras que pesquisamos durante a elaboração deste estudo. Além disso, nos dias de hoje, sempre se deve aproveitar as possibilidades de pesquisas online, para comparar informações ou interpretações diferentes sobre qualquer tema.
Continuamos a parceria com Paulo do Amparo, que nos presenteou novamente com ilustrações e comentário (os quais enriquecem inestimavelmente este trabalho), e com o professor Clayton Avelar, que carinhosamente fez a sinopse deste estudo e a revisão historiográfica (a qual evitou imprecisões ou erros — mesmo assim, possíveis falhas são de responsabilidade minha). Além deles, o indígena alagonano Maynamy Xucuru nos presenteou com o comentário, pelo qual somos imensamente gratos.
Esperamos que estas linhas estimulem entendimentos, expressões e ações em favor do erguimento da humanidade, em tempos cruciais para a sobrevivência da “aldeia global” que se tornou o planeta.
André Duarte P. de Albuquerque Maceió/2019
O autor nasceu em Recife (PE) no ano de 1974, graduou-se em jornalismo, tornou-se tradutor e intérprete da língua inglesa e especializou-se em relações internacionais. Desde 2010, por meio de concurso público, ele é Indigenista na Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Em meados da década de 1990, André conheceu o Rastafari na Inglaterra, e atraiu-se por investigar a diáspora africana e as raízes pretas do Brasil. De volta ao país, ele aproximou-se da Capoeira e aprofundou os estudos sobre como a África e os africanos contribuíram para a formação do Brasil.
Em meados da primeira década do século 21, motivado por estudos sobre relações internacionais e sobre história do Brasil e do mundo, o autor começou a combinar informações de leituras e vivências diversas para formular visões sobre o Brasil Preto. Este livro foi escrito entre os anos de 2017 e 2018, após o lançamento do primeiro livro do autor (Rastafari - Cura para as nações - Uma perspectiva brasileira). Resultado de cerca de 20 anos de estudos, vivências, diálogos e reflexões, este trabalho pretende contribuir, de forma breve, fluida e acessível, com o avanço de reflexões sobre a história dos pretos no Brasil, mas por meio de perspectivas africanas, e não coloniais.
O autor considera que esse tipo de reflexão é fundamental para destravar impasses sociais no país que mais recebeu africanos escravizados no mundo, que possui a maior quantidade de pretos fora da África, e que ainda sofre cotidianamente com consequências ignoradas da cultura do escravismo.